domingo é dia de carta de amor

" E agora estou aqui há alguns meses, não sei se queres que te conte. Era um dia de chuva e a mulher disse 
- Começamos então por aqui. Esta é a sala. Era alta a mulher, digamos um pouco mais alta do que tu. De cima abaixo direita, vestida de escuro. De destino, pensei, vestida de destino, e era razoável pensá-lo. Olhei-lhe o vestido inteiro, não preto, decerto, que era talvez de mais, mas de todo o modo comprometida com o agoiro, fatalidade, coisas assim. E as mãos dadas à frente, com severidade. Equilibrava-me ainda mal nas canadianas, equilibrava-me mal em mim, hei-de explicar-te melhor. 
- Esta é a sala.  
Não havia tempo de a ver bem, mas eu olhei-a com muita intensidade e foi como se a visse bem. Súbito, ela marcou-me desde muito fundo. Não tinha tempo de pensar, ficou-me a imagem para mais tarde. Havia um círculo de gente a toda a roda das paredes - vês? disse a Márcia, companhias não te faltam. Havia gente a toda a volta, mulheres, poucos homens. Instantâneos ao meu olhar, não sei se te explico bem, espectros súbitos, eu via-os. Sentavam-se em cadeiras baixas, cadeiras de rodas, estavam todos muito sossegados, metidos para dentro - que pensais? perguntei-lhes eu também metido para dentro de mim. Possivelmente só eu pensava  que pensavam - que pensais? A mulher de escuro estava à porta à espera que eu não tivesse mais sala para ver. Mas eu tinha, querida. Mesmo a Márcia - não gostas? e eu abanei a cabeça a dizer que sim mas não sabia a quê. Era tudo gente aposentada de ser gente, vivia numa zona intermédia de uma cor de morte mas por empréstimo. E havia ainda um cheiro mole que eu sentia antes de ser também dele e já não sentir. Conto-te tudo isto por miúdos mas não sei se é coisa ainda de entenderes. Por debaixo da minha atenção havia a minha memória impensada de não ser dali, e tudo o que lhe interrompia o discurso interno parava-me o olhar. Mas não sabia olhar nada por sua vez e vinha tudo ao mesmo tempo sobre mim. E mesmo agora que posso e já estou por cima disso, o que me lembra quando lembro é o que primeiro vi. Nós já estamos a sair da sala e eu ainda estou a ver. Curvados amarelos estropiados, o ar taralhouco
- E vamos então ver o quarto
podres esqueléticos, mas não te comovas muito, as caveiras com pressa de serem visíveis, não se mexem, estão quietos na sua invalidez, têm mantas sobre a ossaria dos joelhos, os olhos mortais nas peles encarquilhadas caídos para o chão, que é o chão do seu destino, querida, têm a cor defunta do azeite das lamparinas da igreja.
- E vamos então agora ver o quarto - disse a mulher, muito estatuária.
Mas eu atrapalho-me, depois te conto como foi, eu atrapalho-me ainda com o estupor das canadianas, vou saindo e fico olhando com força até ver bem, uma parada de caveiras a toda a roda da sala e um mau cheiro a corpo, cheio de pressa de apodrecer na sua verdade sem repressão. O corpo. A sua urgência insofrida de se manifestar. Mas também ele nunca existira para mim, quem existia era eu. E era altura de eu te falar do teu corpo, querida, quando também não existia, quero dizer, quando existia mas contigo, com a perfeição de ti que tinha pulso nele. Conto depois."


 Em nome da terra, Vergílio Ferreira



2 comentários:

Naná disse...

Vírginia, adorei!!!

Eu li este livro há alguns anos e fiquei rendida. É dos que consta na minha eterna lista de livro preferidos!
Uma das mais bonitas histórias de amor que já li :)

Virgínia disse...

É lindo, mesmo. Um abraço!